quinta-feira, 16 de maio de 2019

Miojo

Já fazia dias que seus dias eram os mesmos. Parecia se arrastar num ciclo infinito como se não houvesse mais nada, como se não fosse mais nada. Despediu-se do mesmo funcionário, no mesmo horário, da mesma forma. Seria um robô? A ideia, apesar de ligeiramente convidativa, foi logo abandonada pela realidade da monotonia de sua existência. Eu seria mais interessante, ou pelo menos mais inteligente. Sentou-se em seu acento costumeiro no transporte já tão conhecido. Enquanto olhava o sol se por na janela, se questionava quando ela mesma haveria de se pôr para essa vida. Talvez já fosse noite há muito tempo, só não queria admitir. Certamente, não era nenhum dia ensolarado. Abre porta. O silêncio aterrorizador de sua vida vazia. “Eu amo ficar em casa”, dizia o meme que postou no Facebook. Tantos amigos virtuais. Virtuais. Abriu a geladeira e se lembrou que não teve ânimo de cozinhar no dia anterior, ou no anterior. Quando mesmo tinha cozinhado a última vez? Ah sim, aquele sábado que recebeu a Lia em casa. Abre armário. Também não fiz compras... é seu último pacote de miojo. Mas prefere ele que ter que enfrentar alguém do outro lado da linha, ou da porta. Enquanto o macarrão se desfaz na água fervente desejava ter ela mesmo uma banheira na qual pudesse se desfazer. Miojo sem graça. Como ela. E enquanto isso a TV mostra histórias bem sucedidas de famosos que encontraram o amor. Patético.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Ode da ressureição

Cansei
Cansei de tentar
De forçar
De subtrair 
Pra somar

Rimas pobres e baratas
Deformadas

Versos toscos
E tortos

Deixem ser

Uma hora é necessário deixar que a doença saia
Pra que o sangue limpo corra

Deixem ser

O poeta não tem mesmo compromisso com o belo
Mas com o sensível
E quem disse que sensações
Tem forma e cor fixas?

Deixem ser

Porque assim
Talvez

Seja possível reviver

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

No metrô

A menina olha para o chão
como quem olha para nada
como quem não tem nada a ganhar
nada a perder.

O menino olha para o nada
como quem olha para tudo
como quem tem tudo a fazer
tudo a sonhar.

Tudo e nada se encontram
amor

domingo, 1 de julho de 2012

Um dia a gente cresce e descobre que não pode mais correr para o colo da mãe sempre que se sentir com medo ou assustado. A gente passa a ter que enfrentar todos os desafios de frente, sem balançar, e isso tem que ser firme, porque pra nós, de certa forma, demonstra quão bom foi o trabalho que a pessoa que mais amamos fez, quão bons alunos fomos. É como se disséssemos: "olha, mãe, olha como eu aprendi bem!" Mas é tão ruim quando a gente num consegue dar três passos sem cair. Parece tão difícil esse negócio de voar e o pânico da altura, do ter-que-bater-asas nos faz esquecer muito do que aprendemos. Odeio me fragilizar. E tenho me fragilizado com frequência. Tanta frequência que já mal me lembro dos meus momentos de força. A imagem que tenho e guardo, são as sucessivas quedas após tentar inutilmente me lançar e bater as asas. Não tenho voado por mais de 3 metros. E a simples consciência disso me faz agir como criança. Não quero ser criança. E eu já cansei de dizer que eu não vou mais chorar.

terça-feira, 27 de março de 2012

Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-yyy...

Esfregue os olhos
Espreguiçe devagar
Encha os pulmões
Estique braços e pernas:
Eu voltei!

Os dois pés no chão
Avançe o corredor
Escove os dentes
Jogue uma água no rosto:
Eu voltei!

Chame as crianças
Passe um café
Coma alguma coisa
Ponha sua melhor roupa:
Eu voltei!

Saia de casa
Saia às ruas
Às avenidas
Saia! Saia!
Eu voltei!

Anuncie nos bares!
Grite nas praças!
Nos terminais de ônibus!
Dentro dos trens!
EU VOLTEI!

Chame os negros e as prostitutas
Chame os emos e os funkeiros
Chame os nerds, os gordos
Os velinhos do rotary club:
EU VOLTEI!

Convoque os comunistas!
Convoque os socialistas!
Os anarquistas e paganistas!
Direita! Esquerda! Centro-avante!!
EU VOLTEEEII!

O navio encosta no cais.
A brisa marítima já não é a mesma de outrora
nem o seu jeito de bagunçar meu cabelo
e a minha alma
Mas ela tem um não sei quê de novo e velho
Meus pés já em terra firme se libertam.
... eu voltei.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Inteligência Infantil

- Por que se chama venezuela?
- Num sei, Lu. Eu sei porque a Bolívia se chama Bolívia.
- Por quê?
- Por causa do Simão Bolivar, o carinha que fez a independência do país.
- O que é independência?
- É quando um país fica livre. Que nem a gente, no Brasil, num tem ninguém que manda na gente.
Segundos de silêncio.
- Mas e a Dilma? Ela num manda na gente?


*****

Esse diálogo realmente ocorreu, entre meu irmãozinho, de 9 anos, e minha irmã, de 16.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Securidão

Passo os dias na tentativa desse caminho de volta
caminho difícil
complexo
confuso..
Já me parece que ando em círculos a meses.
Anseio sair desse deserto de coisas inertes e inatingíveis.
Cansei de me iludir com oásis.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Complexidade

Pior do que não saber por onde começar
é não começar.
Pior é quando o começo se trata de um retorno
e o retorno fica entre a retomada e o recomeço.
Pior é não ter nada melhor pra escrever
do que essas pesadas palavras pesarosas
como tentativa de retomada
do retorno ao recomeço.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A rosa

Essa noite sonhei com pétalas
delicadas pétalas vermelhas
que se estendiam como cortina
à minha frente.
Mas não eram pétalas comuns
tão pouco pétala que viessem
de quaisquer rosas vulgares.
Brilhavam
um brilho dourado inexplicável
inexplicavelmente belo
tão intenso
que sentia minha própria face
irradiar o mesmo brilho.
Quando
por impulsão da vontade
de tornar as coisas reais pelo tato
tentei tocá-las,
fugiam,
como repelidas por um imã de mesmo pólo.
E algo lá no fundo me dizia
ainda não é tempo;
em breve,
muito breve,
será.
Acordei com essa pétala
sobre o meu travesseiro
como que pra recordar a promessa
dessa esperança que move
meu peito.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Denúncia

A janela do meu quarto aberta
denuncia o que eu
a muito
negava.

Chamem a polícia,
por favor.
Me levaram
e eu não sei quem
nem o quê
mas algo me falta.
Há um espaço vazio.

Chamem a polícia,
por favor.
Me levaram
algo precioso
que eu não dava valor
até dar por falta.

Chamem a polícia,
pelo amor de Deus.
que o que me levaram
foi o verbo.