"Os atos precisam de tempo,
depois de serem realizados,
depois de serem realizados,
para serem vistos e ouvidos"
(Nitzche)
(Nitzche)
Sei bem que melhor seria manter esse acontecimento em segredo. Mas a verdade é que em silêncio ele nunca esteve. Deixo apenas a seu encargo tirar as conclusões que quiser. Um ato como este está mais seguro quando visto de fora. Peço apenas, se me é permitido, que atente aos detalhes sutis. São eles que me livram da culpa.
A bela primavera de nosso tempo me conferira aquele tom rosado às maçãs, cuja aparência se torna diferente quando se deixa a infância. Encontrávamo-nos todos os dias, mas, não sei se por posição ou vaidade, demorei a distingui-lo dentre todos os outros mais.Vale observar que sua fisionomia guardava a beleza para os observadores minuciosos, coisa com que eu, à flor da idade, não perderia meu tempo. Ele só se sobressaiu em meio há tantos, certo dia, porque estava completamente bêbado em praça pública, ele e um amigo, vindo acabar caído aos meus pés, após um dos muitos desequilíbrios, bem sucedido por causa de uma pedra. Parece-me que um breve momento de consciência lhe passou nos olhos, talvez por vergonha ou trauma. Mas foi um breve momento. Virou-se de costas como quem se esbalda na própria lama e começou a gargalhar, muito provavelmente da minha cara de desprezo e horror, que se voltou para o outro lado, completamente ofendida.
Ultrajada, voltei à praça no dia seguinte, como quem quisesse rir do estado lamentável em que ele se encontraria. Estava sóbrio, entretanto, e me olhou com um pouco mais de embaraço que no episódio anterior. Todas as vezes que lá voltava, procurava-o discretamente, ainda que aguardando o mais breve espaço para que a minha vingança se esgueirasse e tomasse lugar.
Imagine a minha perplexidade quando o descobri meu novo professor de piano. Olhou-me como quem olha a qualquer pessoa. Quando meu pai nos foi apresentar, agiu como se fosse a primeira vez que me via e como se isso fosse algo absolutamente corriqueiro, necessário e não significativo. Foram três meses de absoluto tédio. Não trocávamos uma palavra: ele me dava as ordens, eu as obedecia; ele me passava exercícios, eu os executava; e quando insistia em me cumprimentar ao sair ou ao chegar, acenava com a cabeça sem levantar os olhos. Foi então que ele disse ao meu pai que não poderia mais me dar aulas.
Não pôde conter o espanto ao me ver em pé à sua porta, quando atendeu à campainha. Disse que estava de saída e não poderia me atender como mandava a etiqueta. Quando lhe disse que só estava ali para inquirir acerca do motivo que o levou a abandonar as minhas aulas, olhou-me nos olhos. É necessário uma pausa aqui: certos detalhes precisam ser apontados, são sutis demais. Nunca antes havia me olhado nos olhos, tão nos olhos, como quem busca. Senti, sinceramente, seu olhar penetrar minhas entranhas e retornar ao mundo completamente satisfeito por ter alcançado e trazido um pouco do meu íntimo para fora. Então suas mãos destruíram-me esse pouco, com o deboche do riso que lhe seguiu.
Foram longas três semanas sem qualquer notícia ou encontro. Até que o vi passar, na estréia da nova peça - acompanhado. A pobre mulher bem se esforçava para parecer bela e digna do lugar. Não tivera, como eu, entretanto, a graça do encanto e da finura. Fiz de tudo para que ele me notasse. Completamente desatento! Ao fim da noite estava determinada a lhe mostrar quem eu era e como conseguia tudo o que queria.
Na semana seguinte, já conhecendo o horário que retornaria a sua casa, aguardei-o, estrategicamente escondida, eu e uma cúmplice - para que a situação fosse mais real e garantida. Quando ele se aproximava, também nos aproximamos, sem o olhar. Um passo a mais para o lado, no momento certo, foi o suficiente para que ele esbarrasse em mim e eu pudesse lhe cair aos pés, sujando meu vestido e machucando minha mão e meu joelho. Minha cúmplice fez o drama. A mim, bastou, ao me levantar, inclinar-me para frente com um profundo suspiro, conhecendo a beleza do meu colo, e levantar-lhe os olhos carregados de lágrimas e sustentados por um pedido sugerido de piedade. Embaraçado mais pela visão que lhe proporcionei, que pelas acusações em alto tom que minha amiga lhe fazia, convidou-nos a entrar, para que cuidasse dos ferimentos. Ao me sentar na sala, após ele buscar alguns medicamentos, e minha amiga sair, dizendo que me traria roupas limpas, comecei a cuidar do meu joelho. Inclinei-me para frente e comecei a vasculhar o resto da perna, como que procurando outros ferimentos. Quando percebi que estava olhando, levantei-me e perguntei se seria muito abuso pedir para tomar um banho, argumentei que estava ainda suja, e isso infeccionaria os ferimentos. Àquela altura não me negaria. E não negou. Mostrou-me onde ficava o banheiro e disse que me traria uma toalha limpa. Apressei-me em me despir, para que, quando voltasse, pudesse me esconder atrás da porta, suficientemente para que ele não visse nada, suficientemente para que ele imaginasse tudo.
Ao deixar sua casa, certifiquei-me que esqueceria algum pertence meu lá. Dito e feito: dia seguinte estava ele me aguardando na sala. Ofereci-lhe algo para beber e, após insistir, aceitou o café. Bastou que me aproximasse do piano para me perguntar se tinha continuado o estudo. Após saber que ainda tinha interesse, apesar de estar meio afastada, ofereceu-se para voltar a me dar aulas. Não pude aceitar na hora, tive que dar a desculpa de ter que falar com o meu pai, ver se estava disposto. Mas vi, nos olhos dele eu vi, a vontade de estar ali quebrada pela decepção do talvez. Não queria cantar vitória antes do tempo, até porque aquilo ainda não era nem um décimo do que queria, mas isso me garantia que meu plano estava funcionando.
Imagine a minha perplexidade quando o descobri meu novo professor de piano. Olhou-me como quem olha a qualquer pessoa. Quando meu pai nos foi apresentar, agiu como se fosse a primeira vez que me via e como se isso fosse algo absolutamente corriqueiro, necessário e não significativo. Foram três meses de absoluto tédio. Não trocávamos uma palavra: ele me dava as ordens, eu as obedecia; ele me passava exercícios, eu os executava; e quando insistia em me cumprimentar ao sair ou ao chegar, acenava com a cabeça sem levantar os olhos. Foi então que ele disse ao meu pai que não poderia mais me dar aulas.
Não pôde conter o espanto ao me ver em pé à sua porta, quando atendeu à campainha. Disse que estava de saída e não poderia me atender como mandava a etiqueta. Quando lhe disse que só estava ali para inquirir acerca do motivo que o levou a abandonar as minhas aulas, olhou-me nos olhos. É necessário uma pausa aqui: certos detalhes precisam ser apontados, são sutis demais. Nunca antes havia me olhado nos olhos, tão nos olhos, como quem busca. Senti, sinceramente, seu olhar penetrar minhas entranhas e retornar ao mundo completamente satisfeito por ter alcançado e trazido um pouco do meu íntimo para fora. Então suas mãos destruíram-me esse pouco, com o deboche do riso que lhe seguiu.
Foram longas três semanas sem qualquer notícia ou encontro. Até que o vi passar, na estréia da nova peça - acompanhado. A pobre mulher bem se esforçava para parecer bela e digna do lugar. Não tivera, como eu, entretanto, a graça do encanto e da finura. Fiz de tudo para que ele me notasse. Completamente desatento! Ao fim da noite estava determinada a lhe mostrar quem eu era e como conseguia tudo o que queria.
Na semana seguinte, já conhecendo o horário que retornaria a sua casa, aguardei-o, estrategicamente escondida, eu e uma cúmplice - para que a situação fosse mais real e garantida. Quando ele se aproximava, também nos aproximamos, sem o olhar. Um passo a mais para o lado, no momento certo, foi o suficiente para que ele esbarrasse em mim e eu pudesse lhe cair aos pés, sujando meu vestido e machucando minha mão e meu joelho. Minha cúmplice fez o drama. A mim, bastou, ao me levantar, inclinar-me para frente com um profundo suspiro, conhecendo a beleza do meu colo, e levantar-lhe os olhos carregados de lágrimas e sustentados por um pedido sugerido de piedade. Embaraçado mais pela visão que lhe proporcionei, que pelas acusações em alto tom que minha amiga lhe fazia, convidou-nos a entrar, para que cuidasse dos ferimentos. Ao me sentar na sala, após ele buscar alguns medicamentos, e minha amiga sair, dizendo que me traria roupas limpas, comecei a cuidar do meu joelho. Inclinei-me para frente e comecei a vasculhar o resto da perna, como que procurando outros ferimentos. Quando percebi que estava olhando, levantei-me e perguntei se seria muito abuso pedir para tomar um banho, argumentei que estava ainda suja, e isso infeccionaria os ferimentos. Àquela altura não me negaria. E não negou. Mostrou-me onde ficava o banheiro e disse que me traria uma toalha limpa. Apressei-me em me despir, para que, quando voltasse, pudesse me esconder atrás da porta, suficientemente para que ele não visse nada, suficientemente para que ele imaginasse tudo.
Ao deixar sua casa, certifiquei-me que esqueceria algum pertence meu lá. Dito e feito: dia seguinte estava ele me aguardando na sala. Ofereci-lhe algo para beber e, após insistir, aceitou o café. Bastou que me aproximasse do piano para me perguntar se tinha continuado o estudo. Após saber que ainda tinha interesse, apesar de estar meio afastada, ofereceu-se para voltar a me dar aulas. Não pude aceitar na hora, tive que dar a desculpa de ter que falar com o meu pai, ver se estava disposto. Mas vi, nos olhos dele eu vi, a vontade de estar ali quebrada pela decepção do talvez. Não queria cantar vitória antes do tempo, até porque aquilo ainda não era nem um décimo do que queria, mas isso me garantia que meu plano estava funcionando.
Ao final de nossa quarta aula, forjei um mal estar, fingindo quase desmaiar, de forma que ele teve que me segurar para que não caísse. O toque, ah o toque! A liquidação de qualquer espaço e barreira entre sujeito e objeto. Era preciso que ele me sentisse em seus braços, e que meu perfume lhes chegasse às narinas, e às entranhas, como me fizera um dia. Aleguei não ter comido o dia inteiro. E disse que poderia ir, assim que me trouxeram o que comer. Foi necessário um olhar inquiridor, quase rude, para que ele voltasse a si e deixasse minha casa. Desejava-me.
As aulas que se sucederam foram banhadas de olhares e aproximações incomuns. Confesso minha frustração cada vez que a aula terminava sem lhe ter tocado os lábios. Mas a paciência era a ferramenta que me garantiria pleno sucesso. Quando percebi que o dia em que conheceria sua boca se aproximava, fiz com que fosse necessária uma aula em um horário em que teríamos mais liberdade. Estávamos sozinhos.
Todas as recordações mais próximas do meu peito são as daquele dia. É como se ainda pudesse tocá-lo. Ainda sinto suas mãos tímidas e incrédulas de que lhes era permitido caminhar por toda aquela vastidão de lugares ocultos, completamente desnudados e entregues. Seus olhos agora não mais buscavam, antes se entregavam no clímax da sinfonia que me ensinava e tocava pela primeira vez. Não havia mais retorno. Tinha-me, tinha-no.
Tente vislumbrar minha tristeza e desespero quando meu pai lhe disse não e o humilhou no dia em que foi pedir a permissão para me namorar. Exigiu que se afastasse de mim, senão entregaria-o à polícia, pois bem se sabia nossa diferença de idade. Tudo que pude fazer foi esbravejar e bater a porta do quarto, não tinha qualquer autonomia, nem garantia legal, para fazer minha própria vida. Disse, inocentemente, através de minha cúmplice, para que fugíssemos. Qualquer lugar. Eu abandonaria tudo. Ele não. Não podia, não queria abandonar tudo. Parecia sofrer, mas provavelmente tinha em quem se consolar.
Não acreditei quando minha amiga disse ter o visto entrar em casa com uma mulher e que havia rumores de que ela seria sua noiva. Rumores. Porque, pelo visto, ela seria noiva de muitos, depois se descobriu. Quando o vi de novo, após longo tempo, descobri porque me sentia tão perdida e vazia: ainda me tinha, e guardava. Tentei encontrar onde, mas desviava-se de mim. Precisava me ter de volta. Precisava o ter de volta.
Chegou-se então a noite em que subornei a mulher que lhe limpava a casa e o aguardei, em seu quarto, retornar. Quando me viu ali, sentada, resignada, lançou-se aos meus braços, como quem agarra a última esperança de felicidade. Havia quase me esquecido como era ter seus lábios. A sinfonia. Tão bela quanto antes. Mais trágica, no entanto. Quando permiti que o brilho lhe chegasse ao peito, urrou - havia alcançado seu coração. Podia senti-lo, ali, em minha mão. Lentamente o trouxe para fora dele, de mim. O olhar perdido se encontrou na minha mão: estava ali, se sacudindo intermitentemente. Então se calou, pela última vez.
Não lhe posso ser mais clara, para não o escandalizar, mas a verdade é que lhe arranquei o coração. Você não entende? Era preciso que o infinito não acabasse. Não acabasse. Quando o guardei, ainda pulsava. E ainda pulsa enquanto eu viver.
Nenhum comentário:
Postar um comentário